A responsabilidade patrimonial do sócio egresso – ou ex-sócio – de uma sociedade é um tema sensível e que corriqueiramente vem à tona no Direito Empresarial.
O foco do tema é justamente os limites e prazos estabelecidos no Código Civil de 2002 e a partir de que momento se inicia a contagem do prazo legal estabelecido em lei. Ainda, se o prazo é relevante em determinadas circunstâncias e casos concretos, ou se a responsabilidade dele independe.
É o conjunto interpretativo sobre o tema que será capaz de fixar, em determinada contenda, se um sócio egresso da sociedade poderá ser responsabilizado por obrigações por ela contraídas, em sede de desconsideração de personalidade jurídica, na hipótese de sociedades com limitação de responsabilidade e capital social integralizado; e nas hipóteses de sociedades com responsabilização subsidiária do sócio, sem necessidade de desconsideração.
A priori, confira-se como versa o artigo 1.032 do Código Civil:
“Art. 1.032. A retirada, exclusão ou morte do sócio, não o exime, ou a seus herdeiros, da responsabilidade pelas obrigações sociais anteriores, até dois anos após averbada a resolução da sociedade; nem nos dois primeiros casos, pelas posteriores e em igual prazo, enquanto não se requerer a averbação.”
Cumpre salientar, conforme indicado no referido dispositivo legal, que a retirada do sócio não é fator apto a elidir sua responsabilidade pelas obrigações sociais anteriores.
Ainda, com relação ao ponto de vista que nos importa, na cessão de quotas, o Código Civil em seu artigo 1.003, parágrafo único, também prevê o mesmo prazo de 2 (dois) anos que mantém o sócio cedente responsável pelas obrigações contraídas para sociedade enquanto sócio da sociedade, obrigações estas devidas de forma solidária com o seu cessionário:
“Art. 1.003. A cessão total ou parcial de quota, sem a correspondente modificação do contrato social com o consentimento dos demais sócios, não terá eficácia quanto a estes e à sociedade.
Parágrafo único. Até dois anos depois de averbada a modificação do contrato, responde o cedente solidariamente com o cessionário, perante a sociedade e terceiros, pelas obrigações que tinha como sócio.”
A mencionada responsabilidade solidária decorre intrinsecamente da mens legis – da intenção finalística que impulsiona a concepção da regra legal -, de promover proteção de direitos de terceiros face às variadas alterações/inclusões de sócios que podem ocorrer constantemente em uma sociedade.
Note- se que, apesar de o texto normativo ser claro acerca do período de 2 anos no qual o ex-sócio possui responsabilidade decorrente de obrigações advindas da sociedade, ainda há uma grande divergência doutrinária acerca da abrangência e qualificação dessa importante ferramenta de responsabilização do sócio egresso, pelo que tal disparidade será abordada no presente artigo.
1. A interpretação do STJ: a responsabilidade do ex-sócio adstrita ao período de 2 anos após sua retirada
Conforme entendimento de muitos doutrinadores acerca da interpretação das regras estabelecidas em lei, a responsabilidade do ex-sócio está unicamente inserida dentro do lapso temporal de 2 anos, ou seja, passado tal período após a averbação da resolução da sociedade ou da saída do sócio, não há que se falar em qualquer responsabilidade deste por qualquer obrigação da sociedade.
Por essa corrente, o limite é temporal: decorrido o prazo, não cabe qualquer pretensão em face do sócio egresso.
Ainda, de acordo com a supramencionada corrente, o sócio egresso somente poderá se ver responsabilizado a responder por obrigações que tenham sido constituídas pela sociedade da qual egresso desde que tais obrigações tenham sido estabelecidas no período em que ele esteve no quadro societário da empresa.
O racional de referida tese está intrinsecamente relacionado à proteção patrimonial do sócio egresso da sociedade por via da limitação de responsabilidade, e assim, não possuindo mais vínculos jurídicos passíveis de lhe gerar obrigações, se vê liberado a empreender, participar de outras sociedades, ou agir da maneira que melhor lhe convier em suas opções de natureza patrimonial, sem amarras e passivos ocultos.
Trata-se, portanto, de uma interpretação literal da norma, que de certa forma garante segurança jurídica e, ao mesmo tempo, assegura a credores a possibilidade de responsabilização do ex-sócio pelo prazo máximo de 2 anos após a sua saída da sociedade. Vejamos alguns julgados que evidenciam a interpretação majoritária sobre o assunto em favor da interpretação aqui elucidada, todos do STJ – terceira turma:
“RECURSO ESPECIAL. EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE. EXECUTADA. SOCIEDADE LIMITADA. RESPONSABILIDADE. EX-SÓCIO. CESSÃO. QUOTAS SOCIAIS. AVERBAÇÃO. REALIZADA. OBRIGAÇÕES COBRADAS. PERÍODO. POSTERIOR À CESSÃO. ILEGITIMIDADE PASSIVA DO EX-SÓCIO. […] Na hipótese de cessão de quotas sociais, a responsabilidade do cedente pelo prazo de até 2 (dois) anos após a averbação da respectiva modificação contratual restringe-se às obrigações sociais contraídas no período em que ele ainda ostentava a qualidade de sócio, ou seja, antes da sua retirada da sociedade […].” (STJ – REsp: 1537521 RJ 2015/0062165-9, relator: ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, data de julgamento: 5/2/2019, T3 – TERCEIRA TURMA, data de publicação: DJe 12/2/2019).
“AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE DO EX-SÓCIO PELAS OBRIGAÇÕES CONTRAÍDAS APÓS SUA RETIRADA DA SOCIEDADE. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTE ESPECÍFICO. AGRAVO IMPROVIDO. 1. O acórdão recorrido encontra-se em perfeita consonância com a jurisprudência desta Corte no sentido de que, ‘na hipótese de cessão de quotas sociais, a responsabilidade do cedente pelo prazo de até 2 (dois) anos após a averbação da modificação contratual restringe-se às obrigações sociais contraídas no período em que ele ainda ostentava a qualidade de sócio, ou seja, antes da sua retirada da sociedade’ (REsp 1.537.521/RJ, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 12/2/2019). Destarte, inafastável, no caso em tela, a incidência da súmula 83/STJ. 2. Agravo interno a que se nega provimento.” (STJ – AgInt no AREsp: 1403976 SP 2018/0309338-8, relator: ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, data de julgamento: 13/5/2019, T3 – TERCEIRA TURMA, data de publicação: DJe 16/5/2019).
Certo, por claro, que atualmente, e por sedimentação do entendimento, o STJ aceita a corrente aqui apresentada como a melhor aplicação do direito de acordo com as regras jurídicas vigentes.
Vale anotar que o julgamento do Resp 1.537.521/RJ, de fevereiro de 2019, e o entendimento nele exposto, é citado como argumento de autoridade em outras 9 (nove) decisões da Corte Superior (mais em: AREsp 1612981, REsp 1694325 e EAREsp 1520206), e hoje forma o consenso acerca do tema, tendo o específico recurso sido objeto de notícia na mídia especializada e marcando uma posição e entendimento do órgão.
2. A problemática da extensão da responsabilidade do ex-sócio a fatos havidos após à sua saída da sociedade
De outro lado, há corrente argumentativa que se dissocia do que sedimenta e propaga hoje o STJ, que considera a responsabilidade do sócio não somente em virtude de obrigações contraídas durante o tempo em que esteve em determinada sociedade, mas também com base em fatos ocorridos e obrigações contraídas após a sua saída, dentro do período normativo de 2 anos.
Tal vertente adota uma interpretação mais abrangente da legislação e propõe uma medida consideravelmente severa ante à inexistência de qualquer relação com o ex-sócio e eventual dívida originada posteriormente à sua retirada.
Apesar de não ser posição adotada pela doutrina majoritária, alguns juristas entendem que, mesmo após a saída do sócio de uma sociedade, seria inviável a sua isenção de responsabilidade por fatos supervenientes em virtude da permanência de certo vínculo e obrigação daquele perante a empresa.
Em 2013, o próprio STJ julgou o REsp 1.312.591/RS no qual se entendeu não ser possível “trazer para a desconsideração da personalidade jurídica os prazos prescricionais previstos para os casos de retirada de sócio da sociedade (arts. 1003, 1.032 e 1.057 do Código Civil), uma vez que institutos diversos.”. Confira-se:
“DIREITO CIVIL E COMERCIAL. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. DIREITO POTESTATIVO QUE NÃO SE EXTINGUE PELO NÃO-USO. PRAZO PRESCRICIONAL REFERENTE À RETIRADA DE SÓCIO DA SOCIEDADE. NÃO APLICAÇÃO. INSTITUTOS DIVERSOS. […] Descabe, por ampliação ou analogia, sem qualquer previsão legal, trazer para a desconsideração da personalidade jurídica os prazos prescricionais previstos para o caso de retirada de sócio da sociedade (artigos 1003, 1.032 e 1.057 do Código Civil), uma vez que institutos diversos.” (STJ – REsp: 1312591 RS 2012/0046226-0, relator: ministro Luis Felipe Salomão, data de julgamento: 11/6/2013, T4 – quarta turma, data de publicação: DJe 1º/7/2013.)
Nessa vertente, desclassifica-se para outro ramo obrigacional a inteligência do artigo 1.003 do Código Civil, compreendendo-se que o prazo de dois anos trata exclusivamente das obrigações do sócio egresso enquanto sócio, tais como integralizar o capital social.
A questão que nos importa aqui, a responsabilidade patrimonial, portanto, ignora a existência do prazo de 2 anos, para decidir por torná-lo inexistente: havendo requisito que possa gerar desconsideração de personalidade jurídica, poderá haver atingimento do patrimônio de ex-sócio.
A abordagem em questão foi superada pelo STJ, como se viu. É preciso analisar com cuidado o referido posicionamento, tendo em vista a posição atual do sócio que sequer esteve presente no momento da aquisição da obrigação, e por esse motivo seria responsabilizado por fato estranho ao seu alcance e entendimento.
3. A responsabilidade do ex-sócio face à reforma da lei trabalhista
Outro fator inovador que merece ser suscitado é aquele referente ao âmbito trabalhista, tendo em vista as modificações ocorridas no artigo 10 da CLT a partir da reforma da legislação em questão.
Com o advento da reforma trabalhista foi incluído o artigo 10-A na CLT, que versa no seguinte sentido:
“Art. 10-A. O sócio retirante responde subsidiariamente pelas obrigações trabalhistas da sociedade relativas ao período em que figurou como sócio, somente em ações ajuizadas até dois anos depois de averbada a modificação do contrato, observada a seguinte ordem de preferência:
I – a empresa devedora;
II – os sócios atuais; e
III – os sócios retirantes.
Parágrafo único. O sócio retirante responderá solidariamente com os demais quando ficar comprovada fraude na alteração societária decorrente da modificação do contrato.”
Salienta-se tamanha inovação ocorrida na referida norma, restringindo, assim como preleciona o Código Civil, a responsabilidade do sócio ao prazo de 2 anos a fim de responder por dívidas trabalhistas da sociedade, em consonância com o atual entendimento do STJ.
Cumpre ressaltar, ainda, o teor do parágrafo único do artigo 10-A, o qual prevê a responsabilidade solidária do sócio retirante quando verificada fraude na alteração societária. Note-se, portanto, que caso seja verificada qualquer ato ilícito dentro do prazo de 2 anos envolvendo o ex-sócio, este não se eximirá de suas obrigações contraídas em contexto de fraude, ou cuja fraude pretende ser utilizada de meio para eximi-lo de responsabilização.
4. Considerações finais
Conforme exposto, é possível constatar a importância de se analisar cada caso concreto envolvendo a retirada de um sócio de uma específica sociedade e as obrigações que restam e restarão em aberto, tal qual o contexto de tais saídas, a fim de proceder à interpretação do prazo de 2 (dois) anos disposto na legislação vigente.
Trata-se, portanto, de ampla proteção à segurança jurídica do sócio retirante e, ao mesmo tempo, um impedimento à prática de eventuais atitudes abusivas e fraudulentas com vistas a conceder indulgente impunidade a fraudes patrimoniais.
Por: Caroline dos Santos Silva e Igor Guilhen Cardoso
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